Pedro Costa
7 min readAug 23, 2019

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As Brasas

Texto de 2016, escrito por mim, encomendado pelo Rodrigo Franco, inspirado no Sandor Marai e numa fase ainda Spinozista

Esse texto pretende comentar e apresentar um livro. Nessa ordem, como se fossem polidas as lentes para depois enxergar melhor, de longe no caso. Pra quem quiser ver de perto, só buscar um igual ao da foto.

A tradução tornaria inconveniente a reprodução da primeira estrofe da “Chanson de la plus haute tour” de Rimbaud, mas ofereço ambiente ao texto com dois de seus versos.

“Ah! Que venham os tempos / Em que os corações se encontram”

1.

Como se cria o fogo?

A vida carrega segredos. Por vezes tão bem guardados que os coloca bem na nossa frente, num gesto que se confunde entre o convite e o deboche. Ocorre que alguns de nós, por sorte ou cuidado, recebem dicas, e por isso cantam, escrevem e dançam na tentativa de não esquecer um segredo, de espalhar sua memória por todo lugar, compartilhá-lo em ato.

É isto, para mim, o que distingue os artistas de outras pessoas: não a capacidade de compor, mas de expressar, de viver e guardar seu segredo em si, não num livro de poesia na gaveta — já cantou Sergio Sampaio que isso não adianta de nada.

Dentre os segredos que nos oferecem de cara, mas custam interpretação, está o caso da relação entre arte e técnica. Irmãs gêmeas numa relação tempestuosa, abraçadas enquanto discutem sobre quem começou a briga.

Começo falando dessa relação:

Se o jovem hoje anda afastado da contemplação e da arte, atribuem a causa ao uso excessivo da tecnologia. A filosofia tem num de seus clássicos maiores, a República de Platão, uma apologia à censura de artistas e poetas, em proveito de uma melhor arte (téchne, em grego) de governar. A solução do ateniense é bem conhecida por nós: O Brasil dos anos de chumbo era governado por militares “tecnocratas” que, entre tantos grupos, exilavam e perseguiam um em especial: os artistas.

Temos, em muitas situações, a arte se opondo a técnica. Os contrastes acima tentam puxar para cada conceito uma impressão exagerada. A arte é expressão e espontaneidade, a técnica, rigor e repetição.

Apesar do estereotipo, há muito mais nessa dupla. A técnica pode ser entendida como um instrumento para o potencial da arte, uma ponte da expressão para o entendimento, mão firme para o traço, dedos ágeis para o acorde. Noutro sentido, como bem explicou Spinoza em sua Ética, as duas misturam e identificam-se num mesmo movimento: a técnica como o estabelecimento de critérios para guiar a vida, buscando as melhores companhias e interações, identificando os cantos que ressoam harmoniosamente; a arte como resposta espontânea ao mundo, cauteloso improviso na imprevisível sucessão de eventos no tempo, renovando o objeto sobre o qual se debruça a técnica.

É dessa última maneira que todo atleta, orador, cozinheiro ou músico, quando domina sua técnica, é um dançarino. A dança aqui toma um sentido mais abrangente que o de arte corporal.

Explico: o corpo é organismo, reunião de órgãos, com função de sobrevivência e missão darwiniana. A dança toma o corpo e o faz inútil à espécie, não inibe a degradação do tempo, não preserva a carne: a dança expressa o desejo, se relaciona, comunica um sentido, torna o corpo arte, porque está enfim fora do corpo e de suas funções, além-animal, humano. A dança não é dever do corpo, como órgão ou função. A dança é seu poder, no sentido de capacidade de ser afetado pelas ritmos e harmonias que possam se apresentar simultaneamente, um acorde corporal.

O corpo que dança ignora seu entorno. Invoca a si e a outro objeto, do qual se liberta e com o qual se funde. Músculo-ideia: na destreza de alguns passos surge a impressão de desequilíbrio do próprio mundo, deslocado pela centralidade de um corpo que se esquiva-gravita em ordinária embriaguez. Eis o truque: o tempo serve à dança, é seu cenário. O medo e a esperança — paixões antecipadas, uma de tristeza outra de alegria, das quais padece um presente aflito ante a incerteza do instante seguinte — não pertencem a dança, mas ao tempo. Essas alienações da vida não existem no dançar. A dança submete o tempo.

2.

As brasas

Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos a alegria… Depois, retoma coisas e pessoas para ver se já somos capazes da alegria sozinhos… Essa… a alegria que ele quer — Guimarães Rosa

As brasas, escrito em 1942, é um livro de Sándor Márai. Resumir sua história é quase um erro, pois é curta e se dá sobretudo nas entrelinhas. Na obra, um velho general, Henrik, se reencontra depois de quarenta e um anos com um amigo de infância, Konrad, no seu castelo na Hungria. A ação não vai muito além disso. Lá conversam sobre uma história que começa antes:

Konrad vem de uma família rica. Atlético e sociável, gasta dinheiro nos mais bens frequentados ambientes de Viena. Passou a adolescência e os estudos junto de seu amigo, Henrik, e nutriam mútua devoção que ultrapassava qualquer laço de sangue. Henrik, no entanto, vem de uma família mais simples. Carrega culpa pelo enorme sacrifício pelo qual passam seus pais para que mantenha seus estudos em Viena, onde evita saídas desnecessárias. Apesar do claustro, não lhe faltava o mundo: era um poeta. E como artista, enxergava potencial também em Konrad, afinal “ninguém pode ser músico e parente de Chopin e sair impune por isso”.

São narrados alguns episódios desse vínculo, como a estadia de Henrik na casa de campo da família de Konrad, na qual praticavam caça. Tudo para mostrar as reentrâncias e encaixes dessa relação. Na ocasião de uma caçada, marca a ambos uma certa percepção de morte e pulsão assassina, como uma eutanásia sentimental de quem temia os riscos de ter o centro da própria vida fora de si. Ora, se os dois viviam e se expressavam em tal ressonância, nenhum ferimento deixaria única cicatriz, qualquer palavra não dita seria eternamente calada para fora dali. Como o fogo que se alimenta e destrói no mesmo movimento.

A vida preparou histórias distantes por muito tempo. Henrik seguiu carreira militar e fora para os úmidos e difíceis trópicos. Konrad permanecera no continente. Não temos detalhes desse longo período de 41 anos. O livro pula para o reencontro na casa de Konrad, ocasião esta que fora esperada pelos dois e quase inconscientemente preparada ao longo dessas décadas de ausência. Não poderia ser diferente, as lembranças não estavam menores e a idade não era maior, mas suficientes para que a saúde e as memória estivessem no lugar certo para a hora certa. Os quadros das antigas gerações, os vinhos de safras antiquíssimas, porcelanas, a floresta da velha caçada, estava pronta toda uma liturgia para recriar os áureos tempos no quais Konrad e Henrik cresceram e se tornaram amigos na academia militar em Viena.

A conversa transcorre e parece mais um monólogo de Konrad. O que acontecera nesse meio tempo? O que havíamos deixado com o outro? O que havia acontecido entre Henrik e Kristina, esposa de Konrad, que não escapou do inexorável enlace que é o espaço habitado por eles? Conclusões surgem no silêncio, naquela justa união que não poderia ser mais evidente após décadas carentes de notícias. Nunca contaram com as coincidências. Assim como quem dança conta com o corpo uma história, os dois percebiam nos olhos o prazer e a dor vividos naqueles anos afastados, e esses 41 anos eram apenas comentários, preenchiam lacunas dos anos de juventude. Esse é o segredo d’As brasas. Foi tal a técnica, o potencial de expressão que haviam desenvolvido entre si que, por toda a vida, buscaram semelhante palco para a eterna estreia. Se o artista se faz pelo segredo guardado em si, para eles faltavam apenas os afetos sentidos naquela noite para rememorar tal segredo. O tempo transformara a voz e o corpo, mas os dentes afiados da vida preferem a carne jovem para deixar suas marcas indeléveis, ainda que a salmoura dos dias tente estraga-la. Foi através dessas marcas, frutos da enorme diferença que marcava aquelas duas vidas, que se construiu a enorme ponte que os ligaria sempre. Ponte esta construída também sobre o maior abismo — que é preço da diferença, esse evento que os une numa tragédia superior. A diferença observada entre eles foi desenvolvida pelo tempo como caos e profundidade, a abismal e trágica alegria que acompanha a saudade de um outro eu, um humor passado, e a fé de ainda sentir que esse eu nos compõe. Esse jogo temporal que submeteu Henrik e Konrad é como a nota mais alta e mais esperada da música, que não carrega particular sentido isoladamente, mas se ergue através dos minutos que constroem seu altar, arquitetura que permite ser magnífica a repetição de uma música recém-amada. Justamente essa nota se encontrar no meio da música e apenas fazer sentido em seu todo é que torna esse um novo ato do dançar. Não basta o movimento corporal. É preciso o seu encontro num dado momento, com certo ritmo, precedendo certa progressão. E se é longa a música, ou eterno o prelúdio, ainda podemos ter certeza que sua execução cuidadosa se dá como num salto perfeito, cético da gravidade, eterno, culminando em sensação de completude que ultrapassa o entendimento e desconhece o chão.

O reencontro deles fora esse salto, visão ampla sobre o caminho que traçaram, cuja altura causaria vertigem em qualquer um deles se sozinho. Algumas coisas não fazem sentido sem uma visão completa, superior. Mas por vezes, recebemos aquelas dicas do começo do texto, e vamos perceber somente no ápice do salto que deveríamos ter sempre escutado aquela voz. A razão em seu ceticismo teme aterrissar, mas quando dançamos surge novamente a dúvida: será? Porque esses amigos acreditavam que iriam se encontrar depois de tanto tampo, por qual motivo esperavam, o que lhes garantia isso? Nietzsche acertou: “Ter fé é dançar à beira do abismo”.

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