Olhar, imaginação e conhecimento — parte 1

Pedro Costa
10 min readMar 4, 2020

“De vez em quando Deus me tira poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.” — Adélia Prado

Esse é a primeira aula de um curso de sociologia. Ele serve pro vestibular, vamos tratar dessas questões em breve, no momento certo.Antes, vamos nos situar diante do conhecimento, vamos cultivar algo essencial pra entender toda a discussão posterior. Vamos criar um olhar pra realidade, cultivar o olho, que é um símbolo quase universal pra percepção intelectual. Pouco adianta ter os melhores textos, autores e teorias diante de nós se não tivermos um olhar.

ILUSTRANDO UM PROBLEMA INICIAL

Vocês devem conhecer pessoas que são muito diplomadas, tem muito estudo, mas parecem uns idiotas diante dos outros. Ou falam absurdos patentes sobre o mundo. Essa é uma pessoa que pegou a teoria e olhou só pras palavras, só pra estrutura. Ela esqueceu que qualquer teoria fala sobre o mundo, e é pro mundo que devemos olhar. Por outro lado, imagino que vocês também conheçam alguém que tem pouca instrução, não conhece autores complicados, não foi pra universidade, mas ainda assim tem uma sensibilidade assombrosa. Fala do mundo com propriedade, é sensível diante do comportamento dos outros.

Se nalgum momento vocês tiveram dúvida de qual dos dois é mais inteligente — o diplomado arrogante ou a pessoa comum, sensível e atenta — quero dizer que eu não tenho resposta definitiva, mas tudo que estudo me diz que a segunda pessoa(comum) é mais inteligente, e tentarei explicar porque. Vocês não precisam dominar o assunto pra dizer se alguém está errado, mas vão poder verificar se a pessoa está queimando etapas para construir um conhecimento bem fundamentado.

Essa falta de olhar que uma pessoa pode ter, apesar de tanta teoria, é fruto de uma miséria da imaginação.

Consumir boa arte é um caminho pra povoar essa imaginação.

Pra mostrar como esse olhar é importante, vou contar um pouco sobre a Grécia e o surgimento da Filosofia.

OS CAMINHOS NO SURGIMENTO DO CONHECIMENTO

(Essas quatro linhas aqui são o essencial da aula, é o aparece na lousa junto da palavra ‘olhar’)

A seguir listo esses caminhos pelos quais se passa no desenvolvimento do conhecimento, particularmente visíveis na obra de Aristóteles. Do fato concreto, da experiência e da observação(1), extraímos um discurso, uma narrativa parcial a respeito daquela visão do fato(2). Munidos das narrativas, podemos compará-las pra encontrar aquilo que convém, que é verdadeiro, e aquilo que é dispensável ou falso, através da dialética(3). Por fim, passados todos esses processos, podemos conceber a lógica(4) como o trabalho retrospectivo que foi feito, e como uma disciplina que combina diferentes elementos já estabilizados pelos processos anteriores.

Esse é o caminho do conhecimento sobre a realidade social, sobre a filosofia, sobre a psicologia em parte. Outras disciplinas tem natureza distinta, mas compartilham alguns desses caminhos, como a matemática.

1 Poético

2 Retórico

3 Dialético

4 Lógico

Cada um deles será explicado e depois desenvolvido para que se desenhe melhor a relação que possuem.

1 - Poético: Homero, mito, símbolo, poesia, a experiência decantada. A literatura, registro da vida. Aqui estão alguns pré-socráticos tbm, como Tales e Heráclito. Figuras que estão nessa posição: a testemunha, todo artista.

[Platão ilustra seus livros com histórias de Homero. Toda a psicologia, Jung e Freud por exemplo, pensaram em cima de uma tradição mitológica. Agostinho e Aquino olharam para a narrativa bíblica, todo o idealismo alemão pensava com Goethe, o homem cordial de Sérgio Buarque foi muito melhor desenhado antes por Machado de Assis. Camille Paglia escreve todo seu Sexual Personae através da poética. São muitos os exemplos nos quais os grandes teóricos se apresentam como o que sempre são: grandes observadores. Até Marx diz que aprendeu com Balzac.]

2 - Retórico: Coincide com a última disciplina do Trivium. As posições vão tomando forma e buscando espaço entre as pessoas. Aqui estão Protágoras, Trasímaco, as personagens dos diálogos de Platão. É o embate de ideias na busca de filtrar as impressões equivocadas e lapidar a essência das coisas. O jornalista, o advogado, o sofista.

3 - Dialética: conhecidas as diferentes posições, elas serão confrontadas sistematicamente tendo em vista a Verdade sobre aquele assunto. Aristóteles define a dialética como o embate entre a opinião dos sábios. Repare que não é opinião qualquer, mas dos sábios. Platão escreve diálogos por esse motivo. Ele ultrapassou o artifício retórico, já começa a desenvolver a técnica que vai ser descrita por Aristóteles. Sócrates aparece como uma figura importante na Filosofia Grega justamente por começar a filosofar assim, num compromisso maior com a verdade do que com um ponto de vista, ao ponto de ser mais sábio que os outros dizendo ‘Só sei que nada sei’. Obviamente é ironia, mas diante do caos, do engano e da mentira praticados por alguns sofistas, essa postura humilde é mais profícua.

4 - Lógica: combinação de elementos bem estabelecidos, decantados pelo esforço dialético, aqui está a ciência. Por um lado, é uma forma mais avançada e formalizada de conhecimento, por outro, é aquela com menos substância. Trata de esquemas, e se a realidade não estiver bem representada, pode se tornar um grande jogo de ideias mal concebidas, porque não foram bem lapidadas nas instâncias anteriores.

Segunda volta:

A poética é o trabalho do artista, da atenção, do olhar. Não à toa a poesia é a primeira forma literária que surge, e não surge como escrita, mas como histórias contadas oralmente, que passam de geração em geração através do ritmo e do símbolo.

O mito é a construção coletiva de uma história, como pretende a obra de Jung.

O símbolo é a forma por excelência de abertura pra realidade. O olho já foi um exemplo. A Adélia Prado, citada no começo, é outro — ver só pedra é perder a poética do mundo, e não ver o que há de permanência, força, dureza, resistência na pedra. Quando olhamos a pedra só no nível material, perdemos a poesia, e pensamos como o homem que olha só pras teorias, o mundo acontece e esperamos a explicação de terceiros, treinando uma cegueira voluntária. [Aqui podemos desenvolver os níveis de complexidade da simbólica, a simbologia natural, astros, elementos, animais, humanos, criando uma escala simples pra aprender a priorizar os símbolos mais fáceis. Recomendo o estudo das tradições simbólicas religiosas]

A retórica é trabalho do cronista, do professor, do artista por vezes, de todos aqueles que tomam as ideias como algo vivo, que encontra sentido quando floresce na mão de alguém que lhe oferece um lugar no mundo. As teorias sozinhas não fazem muito, precisam da retórica de seu autor pra se comunicarem com as situações concretas. É também uma habilidade do político, que vai costurar as necessidades e expectativas da população, atendias por suas distintas qualificações de homem público e representante do Estado. A retórica é a arte dos mentirosos conscientes. Quem mente e não sabe — sofre de neurose ou ignorância — tem problemas na poética mesmo.

A dialética é trabalho dos filósofos e intelectuais, aqueles que não apenas conhecem e experimentaram os caminhos retóricos, mas se dedicaram longamente a considerar aquelas questões. Nessa qualidade, são dignos que levar suas opiniões a uma disputa dialética com outros sábios. A opinião sem fundamento ou precoce não merece esse lugar porque é imatura, faz ruído, e pode estar desatualizada dos diferentes caminhos já percorridos — não queremos reinventar a roda.

A lógica é assunto de cientistas, mas também de todo mundo. Se o conceito está bem estabilizado, ele não exige mais os cuidados dos sábios pra circular, ele se torna independente, e por isso pode ser ‘vulgarizado’, adere à lingua corrente. Alguns tem barreiras grandes — a matemática mostra facilmente quem erra, e não convida todos a sua prática — mas outros podem apenas ser vulgarizados — a mitologia mal compreendida, a perda do olhar como diz a Adélia Prado.

No fundo, a lógica é uma gramática, um esquema de combinações de discursos válidos, não tem substância própria, depende de outros mecanismos pra encontrar seus elementos.

O matemático pode usa-la facilmente porque lida com elementos muito estáveis, universais.

O físico chega perto, mas já encontra maiores dificuldades dada a natureza empírica de seu objeto.

O economista tenta matematizar sua disciplina, mas erra com frequência. Aliás, é a natureza matematizável que confere tanto prestígio à economia.

A lógica é uma consequência natural de conhecermos os vários elementos, ela é dedutível, isto é, se dominamos sua técnica, podemos transformar poucos axiomas matemáticos em complexas demonstrações de outros padrões.

IMPORTANTE: A lógica pode funcionar bem sem fazer referência à realidade.

Se faço o seguinte encadeamento lógico:

a) João é humano

b) Humanos tem 3 cabeças

logo…

c) João tem 3 cabeças.

Temos um encadeamento lógico correto. A conclusão parte corretamente das premissas. A lógica é perfeita. O problema está nas premissas, que não são assunto da lógca, mas de alguma etapa anterior mal concebida.

Reparem que quando dizemos algo como “precisamos questionar a lógica estabelecida”, o que queremos dizer não é que o pensamento dedutivo não vale nada. Dizemos sim que há alguma premissa equivocada. A pessoa preconceituosa, por exemplo, é alguém que adota premissas erradas e pensa logicamente através delas. Falta pra essa pessoa uma inteligência diferente da lógica, falta a ela a poética, o olhar — por vezes vergonha na cara, porque é possível que alguém despreze os fatos por interesse próprio -, mas supondo uma pessoa bem intencionada, ela pode aprender algo através da experiência, de um livro, de uma outra pessoa. Ela precisa de material pra pensar, não de mais lógica. Esse é um dos argumentos por trás das ideias de representatividade e ocupação de espaços.

ILUSTRANDO OS 4 DISCURSOS DO CONHECIMENTO

É muito importante multiplicar os exemplos pra dar substância à teoria. O que faço aqui não é mais do que uma poética do assunto. Como diria Susan Sontag, antes uma érotica da arte que uma hermenêutica da arte. Pensemos assim.

O PROCESSO JURÍDICO

As testemunhas tem o olhar poético, a narrativa do acontecimento em questão. Os advogados tem a retórica, oferecem substância às visões distintas. O juiz tem a dialética, compara os artifícios retóricos bem trabalhados pra tomar uma decisão. A lógica permeia todo o processo, mas é também o status da jurisprudência posterior ao processo. Ela pode ser a mais certa e certamente é a mais abstrata.

LIBERDADE E DETERMINISMO

Uma dicotomia mal concebida, politicamente empregada em duas ideias equivocadas e opostas: Puro mérito — x — pura vítima

Ortega y Gasset diz “Eu sou eu e minhas circunstâncias, e se não salvo a elas, não salvo a mim.” Somos SEMPRE uma mediação entre esses dois extremos, nunca somente um eu, nunca somente uma circunstância. Toda narrativa deve levar em conta esse princípio filosófico pra se articular adequadamente na realidade. Não há circunstância opressiva o suficiente que torne duas personalidades indistintas. Também não há personalidade forte o suficiente que possa torcer qualquer ambiente. Há diversas teorias buscando justificar sua lógica através de um exagero de um dos extremos. Voegelin desenvolve bem como as ideologias trabalham para criar essas leituras equivocadas da realidade.

JUNG E O MITO

A arte reflete algo da psique do artista.

O mito não tem um criador individual. É uma construção coletiva, o decantar narrativo de várias gerações. Eles sobrevivem no tempo porque entram em ressonância com algum aspecto profundo daqueles que o contam.Por isso a mitologia é uma fonte poderosa pra compreender fenômenos coletivos e inconscientes.

“Não é bom porque perdura. Perdura porque é bom.”

PROPAGANDA

É basicamente poética e retórica

FAKE NEWS

Outro caso de abuso da poética e da retórica, onde se multiplicam as informações pra dificultar o filtro do receptor. A pessoa pode até ter algum discernimento, mas não terá tempo hábil pra distinguir o que serve e o que é mentira.

Contra isso: a confiança em instituições e pessoas, o domínio dos processos de validação do conhecimento, o ceticismo.

CULPA E RELACIONAMENTO ABUSIVO

A pessoa manipuladora é necessariamente habilidosa em poética e retórica

O parceiro seleciona momentos em que o outro cometeu erros(poética) ou outros nos quais ele tenha se sentido mal(poética), engrandece-os enormemente pra gerar culpa e controle(retórica)

POLITICAMENTE CORRETO

A linguagem pode excluir e marginalizar pessoas, seu mau uso pode prejudicar as pessoas psicológica e socialmente. Alguns grupos não aceitam certas gírias e sinalizações, enquanto se identificam com outras expressões condizentes com seus valores. Quando essas diferenças tomam a forma de cerceamento do discurso pelo Estado, temos a censura. Quando o cerceamento do discurso ocorre por grupos políticos progressistas, temos o politicamente correto.

Concluindo

Percebam que várias dessas etapas estão à margem do pensamento científico. Um matemático usa lógica exclusivamente. Um físico usa um sistema de investigação muito bem estabelecido, o método científico, que já cansou de ser percorrido dialeticamente. Eles dificilmente se comunicam com as etapas poética e retórica. O físico ainda precisa encarar terraplanistas, mas o matemático está ainda mais seguro dentro de seus axiomas.

Não é o caso das ciências humanas.

Nós aqui poderíamos trazer anuários estatísticos, pesquisas de campo, dados macroeconômicos, testes de laboratório e pesquisas de neurociência pra ilustrar o comportamento humano. Mas o comportamento humano não começa aí, ele é uma realidade muito mais ampla que isso. E para começar a observar essa realidade, não basta a teoria. Ela pode atrapalhar, inclusive, quando é tomada como um fetiche e entra no lugar da realidade, dos fatos, da poética, da experiência. O primeiro passo é o olhar. Antes de estudar qualquer sociologia ou filosofia, uma pessoa precisa consumir literatura, teatro, cinema, dança, muita experiência e sensibilidade para povoar os conceitos abstratos de significado.

Para Platão, nas Leis, o que havia de mais importante para um jovem cidadão ateniense era frequentar o teatro. Ali seriam dramatizadas as questões do mundo e do humano, revividas na performance dos atores e na alma do jovem.

No próximo texto, desenvolvo mais o eixo poético-retórico. Trataremos da Teogonia de Hesíodo e de um conto de Borges sobre ciência.

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Referência bibliográfica dessa aula, grosso modo:

História da Filosofia, Intro à Filosofia — Julián Marias

Filosofia e Cosmovisão, Tratado de simbólica — Mario Ferreira dos Santos

Mitologia Grega — Robert Graves

Rebelião das massas — Ortega y Gasset

Aion — Jung

História da Origem do inconsciente — Eric Neumann

A imaginação educada — Northrop Frye

Os ótimos cursos de simbólica na psicologia do Jordan Peterson e Ítalo Marsili — disponíveis no Youtube

Against Interpretation — Susan Sontag

A poesia de Adélia Prado e Antonio Machado

Os contos de Machado de Assis e Alberto Mussa

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